De guerra separatista a símbolo cultural: o que 20 de setembro lembra
Mais do que um feriado estadual, o Dia do Gaúcho virou um espelho de quem o Rio Grande do Sul foi, é e quer ser. A data de 20 de setembro remete à eclosão, em 1835, da Revolução Farroupilha — uma guerra de dez anos que colocou o Império do Brasil diante de um levante regional articulado por estancieiros, militares e setores que pediam menos impostos sobre o charque, mais autonomia administrativa e respeito aos interesses locais.
No ano seguinte, em 11 de setembro de 1836, os farrapos proclamaram a República Rio-Grandense. Era um gesto político e simbólico: declarar independência e organizar um Estado no extremo sul do país. Personagens como Giuseppe Garibaldi entraram nessa história — o italiano se tornaria um mito transnacional — e a luta ecoou além das fronteiras brasileiras, conectando o pampa a debates republicanos da época. Anita, parceira de Garibaldi, saiu de Laguna e também marcou presença, colocando mulheres em um enredo que por muito tempo foi narrado só por homens.
O fim veio em 1845, com o Tratado de Ponche Verde. Não houve vencedores absolutos: houve cansaço, negociações e concessões. A anistia aos rebeldes foi um ponto central; muitos líderes farroupilhas foram incorporados ao Exército imperial, e a província voltou ao Império com sua elite fortalecida na mesa de decisões. Essa costura política virou lição recorrente no RS: identidade regional pesa, e quando pesa, muda rumos em Brasília.
Desse caldeirão nasceu um símbolo que atravessou séculos: o gaúcho do pampa, de bota, bombacha e poncho. O tipo humano que mistura lida campeira, cavalo, trabalho duro e uma ética de honra se espalhou pela região do Prata e mora no imaginário de Brasil, Argentina, Uruguai e até da Bolívia meridional. No RS, 20 de setembro é a data magna do Estado, reconhecida em lei e celebrada nas escolas, nas praças e nas estradas de chão que ligam estâncias, pequenos municípios e a capital.
A questão é que símbolo também muda com o tempo. A figura idealizada convive com a história real de peões pobres, rotinas exaustivas e fronteiras porosas. Não há pampa sem contradição. Esse é justamente o ponto que hoje pauta parte do debate público: o que se celebra e o que se esquece quando se fala de tradição?
Festa, economia e reflexão: como a tradição se reinventa
O calendário cultural do RS se reorganiza todos os anos em torno da Semana Farroupilha, que vai de 7 a 20 de setembro. Cavalgadas, desfiles, fandangos, tertúlias, oficinas de chimarrão, rodeios e churrascos coletivos tomam conta do Estado. Em Porto Alegre, o Acampamento Farroupilha transforma o Parque Harmonia em uma pequena cidade temática, com piquetes, espetáculos, culinária típica e programação escolar. O fluxo de visitantes impulsiona a rede de hotéis, transportes, gastronomia e comércio de trajes e artesanato.
Por trás da festa, há uma engrenagem organizada. O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) fala em participação ativa de milhões de pessoas e coordena mais de dois mil CTGs — muitos fora do Brasil, de Los Angeles a Osaka. Esses centros funcionam como pontos de encontro da diáspora gaúcha, onde filhos e netos de migrantes aprendem dança, música, história regional e etiqueta campeira. O pampa vira ponte cultural para quem mora longe.
Nos últimos anos, a celebração precisou se adaptar a um cenário mais duro: enchentes e temporais afetaram cidades inteiras, deslocaram famílias e interromperam atividades. Em alguns municípios, cavalgadas foram encurtadas, programas migraram para locais cobertos e ações solidárias entraram na agenda, com arrecadação de doações e apoio a abrigos. A tradição não ignorou a realidade; abraçou quem mais precisava, em especial no interior.
Também mudou o perfil de quem participa. A antiga cultura majoritariamente masculina abriu espaço para mulheres em palcos, patronagens e pistas de dança. Prendas assumem liderança, organizam eventos, pesquisam história e disputam concursos com foco em conhecimento, não só em estética. Jovens de escolas públicas e privadas tomam os palcos com declamação, chula e violão, e aprendem na prática a diferença entre folclore engessado e cultura viva.
Essa vitalidade convive com perguntas incômodas, e isso é saudável. Há um esforço crescente para dar visibilidade a personagens historicamente marginalizados, como os Lanceiros Negros, que lutaram ao lado dos farrapos e foram vítimas do episódio conhecido como Massacre de Porongos, em 1844, tema de pesquisas e memoriais. Também ganham espaço as discussões sobre a presença indígena nas rotas do gado e nas missões, além da influência de imigrantes alemães, italianos, poloneses e árabes, que leram o gaúcho a partir de seus próprios valores.
Outro ponto em pauta é a romantização do campo. A vida campeira é dura, perigosa e técnica. Ao mesmo tempo, é carregada de beleza e pertencimento. O equilíbrio entre preservar o que emociona e reconhecer o que doeu exige cuidado. Por isso surgem iniciativas de formação histórica em CTGs e escolas, rodas de conversa com pesquisadores e projetos que estimulam leitura crítica de símbolos como o lenço, o chimarrão, o laço e o próprio poncho.
O debate político também aparece — às vezes de maneira explícita, às vezes nas entrelinhas. O RS tem tradição de discutir autonomia, federalismo e prioridades de gasto público. Há quem veja na Semana Farroupilha um lembrete constante de que a voz do sul precisa ser ouvida; há quem tema que o discurso vire divisão. No meio disso, a maioria segue tratando o 20 de setembro como um encontro de pluralidades: identidade forte, sim; isolamento, não.
No terreno prático, a festa já movimenta cadeias inteiras: desde criadores de gado e produtores de erva-mate até costureiras de bombacha e fábricas de facas artesanais. Assadores profissionais viajam o Estado, grupos musicais lotam agendas e pequenos negócios encontram no mês de setembro a melhor safra de vendas. Em paralelo, crescem pautas de sustentabilidade: manejo de resíduos nos acampamentos, origem da lenha, bem-estar animal em provas campeiras e prevenção a incêndios.
A tecnologia encurtou distâncias. Shows e concursos são transmitidos online, o que permite que gaúchos espalhados pelo país — e pelo mundo — acompanhem em tempo real. A digitalização também preserva memória: registros de danças, de receitas de família, de causos e de sotaques ficam disponíveis para pesquisa e ensino, ajudando a proteger uma cultura que sempre foi oral.
Na sala de aula, professores aproveitam a data para ir além da superfície. Trabalham mapas da Campanha, linhas do tempo da guerra, a economia do charque, a circulação de gado rumo ao Prata e os efeitos da escravidão na região. Museus locais organizam exposições temporárias, e bibliotecas preparam clubes de leitura com autores do pampa. O objetivo não é ensinar culto cego à tradição, mas mostrar como tradição e crítica podem caminhar juntas.
Por fim, tem o lado afetivo, impossível de medir em planilhas. Para muita gente, a primeira cavalgada da vida acontece num 20 de setembro; o primeiro mate amargo, também. Histórias de família circulam nos piquetes, amizades nascem em filas de costela, casais se formam num vaneira no galpão. A tradição, nesse sentido, cumpre aquilo que promete: dá pertencimento. E quando a comunidade precisa, essa rede se transforma em socorro, como se viu em enchentes recentes que mudaram o tom da festa, mas não sua razão de ser.
O 20 de setembro continua atual porque não se encerra no passado. Ele relembra uma guerra que virou lição de política e autonomia; celebra um repertório cultural que segue vivo; e pede um olhar honesto para as páginas menos confortáveis da história. É nessa fricção — entre orgulho e reflexão — que o Rio Grande do Sul encontra um norte para o próximo setembro.