A telenovela Garota do Momento trouxe para o horário nobre não só emoção, mas também história. Nos episódios de 11 e 12 de novembro de 2024, o público viu a protagonista Beatriz, vivida por Duda Santos, encarar de frente o racismo ao ser acusada injustamente de furto. O que poderia ser apenas mais um drama de novela virou um ato político com uma homenagem direta a Gloria Maria, uma das grandes referências do jornalismo brasileiro e símbolo notório da resistência negra no país.
Quem acompanhou Gloria Maria na televisão sabe que sua presença era sinônimo de pioneirismo. Ela foi uma das primeiras jornalistas negras a ocupar espaço de destaque na principal emissora brasileira, a TV Globo. Seu trabalho não era apenas informar, mas também quebrar barreiras — especialmente ao desafiar, publicamente, diferentes formas de racismo.
No episódio marcante, Beatriz não apenas se recusa a aceitar o tratamento discriminatório, mas faz questão de citar a Lei Afonso Arinos — a primeira legislação brasileira a tipificar o racismo como contravenção penal, promulgada em 1951. Sua fala, "Vocês querem revistar minha bolsa? Eu mesma abro! O que aconteceu aqui é mais um exemplo de como tratam pessoas negras nessa sociedade preconceituosa. É vergonhoso que a justiça não aplique a Lei Afonso Arinos", escancarou uma ferida que ainda está longe de cicatrizar.
Esse momento no roteiro faz uma ponte direta com um episódio famoso da vida da própria Gloria Maria. Durante os anos 1970, ela usou essa mesma legislação para denunciar sua exclusão em estabelecimentos e eventos – uma iniciativa ousada numa época em que o racismo era silenciado ou até naturalizado. Ao trazer essa referência para a trama, Garota do Momento conecta drama à história real de resistência, mostrando que, apesar das décadas, os desafios seguem atuais.
A escolha dos roteiristas de voltar ao passado para ilustrar o presente funciona quase como um espelho para a sociedade. Até hoje, os relatos de abordagens preconceituosas, revistas injustas e suspeitas automáticas recaem mais sobre pessoas negras. O desabafo de Beatriz não só conversou com a biografia de Gloria Maria, mas também ecoou a indignação de quem enfrenta o preconceito cotidianamente, nas ruas e nos bastidores das instituições.
O impacto da exibição dessas cenas vai além da homenagem. Muitos espectadores dividiram nas redes sociais suas experiências pessoais, dizendo que se viram representados na reação firme de Beatriz. Outros destacaram a importância de a novela expor a dificuldade de transformar leis em justiça efetiva. Legislações como a Lei Afonso Arinos foram marcos fundamentais, mas só começaram a ganhar força real décadas depois, com leis mais rígidas, como a Lei Caó de 1989 e a legislação atual sobre crimes de ódio.
Gloria Maria sempre foi lembrada não apenas por sua carreira brilhante, mas pela postura de não se calar. Agora, sua trajetória volta ao centro do debate público, inspirando roteiros e realçando a urgência de debater racismo estrutural no Brasil. A forma como Garota do Momento costurou realidade e ficção mostra que existem modos criativos de provocar reflexões sem romantizar a dor.